Brasília, 14 de maio de 2021.
O Relator da PEC 32/2020 na CCJ – Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados emitiu parecer sobre a sua constitucionalidade.
O Relator emitiu um voto alinhado com os pressupostos usados na Exposição de Motivos da PEC 32/2020, incorrendo nos mesmos equívocos e superficialidades, ao afirmar que “a presente proposta de emenda à Constituição Federal de 1988 visa modernizar o serviço público aos tempos atuais, buscando melhores os resultados com o menor custo possível”.
Embora afirme que se trata “de uma proposta de modificação para os novos servidores públicos, reforma para o futuro, respeitando, pois, a regra constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada”, ressalva que “não há direito adquirido a determinado estatuto jurídico”, ou seja, reconhece que as modificações que afetam o regime jurídico dos atuais servidores, como a revogação das balizas que limitam a livre indicação para cargos de confiança e a flexibilização das hipóteses de desligamento de servidores públicos estáveis.
Segundo o Relator, a PEC 32/2020 não contém vício de inconstitucionalidade formal ou material, tendo sido atendidos os pressupostos constitucionais e regimentais para sua apresentação e apreciação. Segundo ele, os temas polêmicos envolvem questões de mérito, exceto dois pontos: (a) a restrição ao exercício de qualquer outra atividade remunerada por parte dos ocupantes de cargos típicos de Estado, proposta pela alteração do inciso XVI do art. 37 da Constituição; e (b) a extinção, transformação e fusão de entidades da Administração Pública autárquica e fundacional, tema presente na inclusão da alínea “d” no inciso VI do art. 84 da Constituição.
Para o relator, a restrição ao exercício de outra atividade remunerada teria que estar relacionada ao “necessário conflito de interesses” e que “impedir que esse servidor exerça qualquer outra atividade remunerada representa uma restrição flagrantemente inconstitucional que não se justifica por ser o único tipo de vínculo da presente Proposta de Emenda à Constituição a continuar tendo direito a estabilidade”, concluindo que “a proposta como está redigida elimina o núcleo essencial do inciso XIII do art. 5º (livre o exercício de qualquer trabalho), bem como o art. 5º, caput (igualdade em sentido formal e material), ambos da Constituição Federal de 1988, pois a expressão ‘a realização de qualquer outra atividade remunerada, inclusive’ impossibilita o necessário tratamento jurídico adequado para situações fáticas diversas.”
O relator entendeu ser inadmissível a possibilidade extinção de entidades da Administração Indireta por decreto do Presidente da República, pois isso “acarretaria grave alteração no sistema de pesos e contrapesos, ínsito ao modelo de separação de poderes e ao controle da Administração Pública pelo Poder Legislativo, ferindo os termos do inciso III do § 4º do art. 60 da CF/1988, que dispõe sobre o núcleo imodificável da Constituição”.
Diante disso, o Relator votou pela admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, com as emendas saneadoras anexadas: a) a emenda supressiva nº 01, que retira a expressão “a realização de qualquer outra atividade remunerada, inclusive”, do inciso XVI, do art. 37, constante no art. 1º da PEC nº 32, de 2020; e b) a emenda supressiva nº 02, que supre a alínea “d”, do inciso VI, do art. 84, constante no art. 1º da PEC nº 32, de 2020.
Não podemos deixar de referir aos equívocos incorridos pelo ilustre relator. Assim como ocorreu em relação aos tópicos que mereceram emenda supressiva, outras questões não são apenas controvertidas, mas ilegítimas em face do núcleo duro de garantias constitucionais, que, como sabemos, não pode ser objeto de reforma.
Um dos equívocos é o aprofundamento da disparidade de armas entre a Advocacia Pública e o Ministério Público, que resulta do texto acolhido pelo Relator. O próprio relator reconhece que “os membros do Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas (…) não estão alcançados pela presente reforma constitucional”.
Assim como ocorreu em relação à proposta de permitir que entidades da Administração Indireta sejam extintas por decreto do Presidente da República, o abismo entre as garantias institucionais que protegem os integrantes do Ministério Público (protegidos pela vitaliciedade) e os membros da Advocacia Pública (albergados por uma estiolada e cada vez mais precária estabilidade) “acarretaria grave alteração no sistema de pesos e contrapesos, ínsito ao modelo de separação de poderes (…), ferindo os termos do inciso III do § 4º do art. 60 da CF/1988, que dispõe sobre o núcleo imodificável da Constituição”.
No julgamento da ADI 3.704, o STF reconheceu a essencialidade das atribuições exercidas pela Advocacia Pública, não seria justificável a imposição de tratamento desigual e mais restritivo à Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro em relação às demais funções essenciais à Justiça: Ministério Público e Defensoria Pública. Pois é esse tratamento injustificadamente desigual que a PEC 32/2020 está atribuindo aos membros da Advocacia Pública em comparação aos (igualmente essenciais) membros do Ministério Público.
Além desse problema de ordem geral, o voto do Relator abordou de maneira constitucionalmente indevida o tratamento dado ao vínculo de experiência, ao instituto da estabilidade e aos cargos de liderança e assessoramento.
O ingresso por meio do vínculo de experiência configura outra inconstitucionalidade. Não é adequada a afirmação de que “não se pode afirmar juridicamente – nesta fase do processo legislativo – que a criação do vínculo de experiência viola o art. 60, IV, da Constituição Federal de 1988, pois (…) não há direito adquirido a regime jurídico para futuros servidores da Administração Pública”. Isso porque não há equiparação possível entre a dilatação do período de estágio probatório e a criação do vínculo de experiência como uma etapa do concurso público.
A integridade do princípio da impessoalidade também não pode ser atingida. Bom lembrar que a proteção conferida pelo art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição aos direitos e garantias individuais abrange não apenas os princípios fundamentais, mas também as regras que os concretizam no plano constitucional[1].
O sobreprincípio republicano e os princípios da impessoalidade, da probidade e da moralidade configuram cláusulas pétreas (CR, art. 60-§4º-IV), pois são instrumentos de realização da direitos fundamentais, entre eles a isonomia. Assim, qualquer alteração nesses preceitos, que implique redução significativa da esfera de proteção conferida pelo constituinte originário, configura inconstitucionalidade, agravada pelo fato de que a realização de atividades de representação da União, ao ser conferida a “concursando”, implicará na fragilização da parcela do interesse público cuja proteção for atribuída aos que atuarem sob vínculo de experiência.
O estiolamento da estabilidade, que atinge em cheio os atuais servidores, foi tratada de maneira superficial no Parecer, com base no argumento prosaico de que não há um regime estatutário. Não se trata de tornar imodificável o regime jurídico estatutário, mas de preservar a integridade de garantia essencial à proteção dos interesses confiados aos servidores que exercem atividades típicas de Estado.
Com a nova redação do art. 41, § 1º, incisos I a II, os ocupantes de cargos típicos de Estado passam a ser demissíveis por decisão “proferida por órgão judicial colegiado” tornando letra morta a exigência de trânsito em julgado. Trata-se de uma violação frontal ao princípio da presunção de inocência, e no caso específico dos advogados públicos cristaliza-se um afastamento ainda maior em relação ao instituto da vitaliciedade, fragilizando, como dissemos, o sistema de freios e contrapesos e a higidez do princípio da igualdade.
Por fim, a ampliação da possibilidade de ingresso de pessoas não aprovadas em concurso público nos órgãos da Advocacia Pública sequer foi objeto de consideração no Parecer do Relator, que ignorou os aspectos constitucionais envolvidos.
O STF possui consolidada jurisprudência sobre os critérios que devem nortear a criação de cargos em comissão. Em julgamento de recurso com repercussão geral, proferido no Recurso Extraordinário (RE) 1041210, a Corte Suprema reafirmou seu entendimento de que as atribuições dos cargos em comissão devem ter relação com as funções de chefia e assessoramento, guardando vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado.
Ao apreciar o mérito, o STF reafirmou que a criação de cargos em comissão somente se justifica quando suas atribuições, entre outros pressupostos constitucionais, forem adequadas às atividades de direção, chefia ou assessoramento, sendo inviável para atividades meramente burocráticas, operacionais ou técnicas. Embora o entendimento esteja calcado na redação atual do inciso V do art. 37 da Constituição Federal, há estreita relação entre o referido preceito e o princípio republicano, que ele busca realizar ao estabelecer que as funções de confiança serão exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e que os cargos em comissão serão preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, sempre destinados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.
No caso, a porteira que se abre à ampla nomeação de cargos de liderança e assessoramento tende a abolir os direitos fundamentais, na medida em que estiola a eficácia do sobreprincípio republicano e dos princípios da impessoalidade, da transparência e da moralidade administrativa, concebidos par emprestar máxima eficácia aos direitos e garantias individuais dos cidadãos. Trata-se, ademais, como ponderado em nossa Nota Técnica de março de 2021, de uma grave ameaça ao caráter público, republicano e mesmo transversal da Advocacia de Estado, encarregada de representar não apenas o Poder Executivo, mas órgãos e agentes dos demais Poderes e órgãos autônomos. Para o fiel cumprimento de seu mister institucional, é importante que os dirigentes e gestores dos órgãos sejam escolhidos entre seus membros, como ocorre no MP e na Defensoria.
Por tudo isso, é forçoso concluir que o Parecer do Relator esteve aquém do que exige o princípio da supremacia da Constituição, além de não observar as cláusulas pétreas e os princípios e garantias que lhes emprestam eficácia e efetividade. A CCJ tem a oportunidade, ainda, de sugerir outras emendas supressivas, voltadas a garantir a integridade da Constituição Federal, evitando a cristalização de uma situação de insegurança jurídica e fragilização do interesse público.
Lademir Gomes da Rocha
Presidente da ANAFE
[1] “[…] não são tipos ideais de princípios e instituições que é licito supor tenha a Constituição tido a pretensão de tornar imutáveis, mas sim as decisões políticas fundamentais, frequentemente compromissório, que se materializam no seu texto positivo (ADI 2.024/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º.12.2000).